Dentro de diversas crenças, sexta-feira é um dia sagrado, dia de oração, dia de cuidar da energia... Um dia especial. Uma sexta-feira de Finados tem tudo isso e mais um pouco. A data inspira reflexões, pede respeito àqueles que se foram e acolhimento aos que perderam pessoas queridas. O que muda de casa para casa, família para família, de religião para religião, de país para país, é a forma de vivenciar o momento.
Aqui, no núcleo Aeroporto/Interlagos do
Semente do Jogo de Angola (grupo do
Mestre Jogo de Dentro), resolvemos celebrar o dia 2 de novembro com muita energia positiva. Por decisão do líder da casa, o Contra-Mestre Fábio Formigão, mantivemos a Roda de Capoeira, que acontece toda sexta-feira, a partir das 20h30, e o Sarau da Madrugada, que rola toda primeira sexta-feira de cada mês. E parece que quem veio chegou com a mesma intenção positiva. Que energia poderosa!
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"Quem nunca viu venha ver" |
Roda de Capoeira e Samba de Roda
Começou, claro, com Capoeira. A roda contou com a presença dos alunos do grupo, convidados de fora e convidados que já são mais que da casa, como o pessoal do grupo
Angoleiro Sim Sinhô, do Mestre Plínio. A música diz que "Capoeira é pra homem, menino e mulher" e estavam todos bem representados: homens, mulheres e crianças vadiando Angola ao som da bateria e do cantar do Contra-Mestre Formigão, do Semente, e do Contra-Mestre Pedro Peu, do Angoleiro Sim Sinhô.
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"Capoeira é pra homi, menino e mulé" |
Depois da roda, o samba de roda. É para homem, menino e mulher também, mas a mulherada domina. O balanço e o sapateado delas anima os tocadores e traz ainda mais energia à prática da tradição herdada das velhas pretas baianas. Mas os homens não ficam tão atrás, não. Principalmente, na hora de sambar de dupla. Viola boa, tocadores de valor, se deixasse, durava até de manhã. Mas, tinha sarau para rolar. Formigão puxou o 'Adeus, Adeus' e encerrou o samba.
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"Saia do mar, venha ver, venha ver" |
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"Jogar mais eu, mano meu" |
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"Iê... A Capoeira, Camará" |
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"Tenho que ir embora, não posso demorar" |
Talita Ribeiro e João Pellegrini
A partir daí, estavam abertos os caminhos para o 4º Sarau da Madrugada. O sarau já tem suas figurinhas cativas, mas toda edição traz pessoas maravilhosas, que a gente torce para virarem cativas também. A missão de abrir a noite ficou com a cantora Talita Ribeiro e o violonista João Pellegrini, ambos do time de convidados especiais do dia. A Talita logo avisou que manteria a pegada do samba, mas que faria "um samba mais clássico". E dá-lhe Noel Rosa! ‘Feitiço da Vila’, ‘Fita Amarela’, numa voz doce... O povo só começou a despertar da hipnose em 'Reconvexo', de Caetano Veloso, onde já se ouviam algumas vozes a acompanhar. Foi a Talita chamar Dona Ivone Lara, com 'Alguém me avisou', que o coro engrossou. Alan Zas chegou junto no pandeiro e a galera, nas palmas. Foi pra lá de lindo, e ainda rendeu uma bela tela pintada pelo Mathias!!!
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João Pellegrini e Talita Ribeiro |
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Uma voz encantadora e cativante |
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O som inspirou o pincel, e eis "as artes"... |
Contra-Mestre Pedro Peu
Na sequência, foi a vez do Contra-Mestre
Pedro Peu fazer sua apresentação. Disse a todos que tocaria uma música que costuma ser executada com violão e percussão, mas ele a faria diferente: no berimbau e no gogó. Contou também que compôs a canção depois de ouvir um professor se queixar do barulho de um galo cantando. A letra dizia "quando cansarmos da zoada daqui, vamos para lá ouvir o galo cantar". E, no meio da boa prosa, decidiu "parar de conversa" e contou uma última. Disse que, na escola, só tomava bronca por um motivo: "o Pedro é um bom aluno, mas não para de conversar".
Após a canção, uma regra foi estabelecida: "ninguém pode ficar parado! Não precisa dançar, mas ficar parado não pode". O povo do Sarau da Madrugada é madeira! Missão dada é missão cumprida! Todos de pé. O primeiro desafio era improvisar. A música dizia "no meio da feira tudo tem", e a galera respondia o que poderia ter, rimando ou não. Entre “xuxu para o meu amor” e "promoção e pra mocinha", rolou de tudo. Tudo tem!
Aí veio o coco. Quem não sabia a dança aprendeu a marcar a batida nos pés e, mais tarde, se virou para marcar nas mãos também. Assimilado o ritmo, a brincadeira era bater as mãos com as de quem estivesse dos lados, sem perder a toada. Pedro Peu pediu para todo mundo se desfazer da "criança adaptada", para deixar a criança interior totalmente livre. O povo já tava pegando fogo, imagine depois disso...
Com a criança solta, ficou fácil soltar a língua também. A pedidos, uma embolada de ritmo contagiante e letra difícil. Azar de quem perdeu o 1º Sarau da Madrugada. Quem tava pediu para o Contra-Mestre repetir a brincadeira e se aproveitou da memória para não deixar a língua dar nó. E teve mais música, mais dança. Para finalizar tudo, o Contra-Mestre mandou uma ciranda. Acabou lá no alto, com muito aplauso e a garantia de que a regra foi seguida à risca: ninguém ficou parado.
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A galera se concentrou pra ouvir o Contramestre Pedro Peu... |
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...Ele fez a galera levantar e deu a ideia... |
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...Explicou, contou umas histórias... |
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... E botou o povo pra balançar o esqueleto... |
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... Teve improviso, Coco, Ciranda, Trava-língua, Embolada... |
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... E a galera colaborando na sonzeira que comeu solta!! |
Alan Zas
Antes de chamar o terceiro convidado especial,
Alan Zas tocou 'Relampiano’, de Paulinho
Moska e Lenine, e disse que era “para acalmar os ânimos”. Explicou também que a dinâmica do sarau é assim mesmo, sobe e desce. Almofadas e cadeiras, que haviam sido expulsas para dar espaço à dança, voltaram para descansar os corpos dançantes. Calça Preta do Semente do Jogo de Angola e um dos organizadores do sarau, Alan aproveitou para comentar o Dia de Finados, discordando do raciocínio de se estabelecer datas específicas para coisas que deveríamos fazer sempre: reverenciar os que se foram, valorizar a mulher, o negro, o índio... Citou a situação dos Guarani
-Kaiowá
, que é crítica há anos e só agora está recebendo uma atenção maior. Para fechar, "Canto Nativo". Uma música composta pelo próprio Alan, há tempos, quando estava em contato com aldeias Guarani de São Paulo . "Na morte, o nascimento de uma nação". Versos bonitos e duros, num canto emocionado que colocou todo mundo para pensar. "Eu vejo o futuro repetir o passado", e o presente está aí, gritando por atitude. Palmas merecidas, de quem entendeu o recado. Para quem não entendeu, aqui CIMI (Conselho Indigenista Missionário) tem mais.
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Alan Zas mandou as suas |
Akins Kintê
Após a música, o Alan chamou: "Akins, mande a sua!". E ele chegou na sinceridade, contando que estava vindo de um samba difícil de deixar. Cansado, mas na pegada. A poesia entrou sem aviso: "ofereço para o meu homem". E, recitada na levada do rap, expôs, sob o olhar feminino, a revolta resignada da mulher que espera o companheiro voltar da noite. Briga, "tu abusa, rapaz!", mas engole a dor e o orgulho: "a porta eu não barro, minha tristeza eu barro". Porta aberta, mesa posta e a resposta: "ofereço à minha mulher". Ecoa um "aê!" grave e aliviado dos homens presentes, que perceberam na troca de gênero da personagem a oportunidade de se defenderam das acusações de abuso. Akins amansou a euforia: "calma, calma, que essa parte é louca!". E era. Tinha justificativa ("o trabalho me esgana, para mim só resta o fim, o fim do fim de semana"), consolo ("pro tititi não dei bola") e sinceridade ("eu te amo, mô, depois da várzea").
Quando os aplausos pensaram em vir, já tinha outra rolando. Essa era sobre o cabelo crespo. Crespo, que é "toda uma vida quando livre". Crespo, não duro. "Duro é o genocídio, não o crespo". E foi que foi, até ser aplaudido de pé. "Desculpa, eu tô a milhão". Desculpado. A essa altura, a galera já tava também. A força do recitar do Akins deixa os versos ainda mais penetrantes. Mas, vale muito a pena conferir o trabalho do cara.
Boa viagem!
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Akins Kintê emendando e remendando em Prosa, Verso e Rima |
Microfones abertos
No Sarau da Madrugada há convidados especiais, mas todo mundo é convidado e todo mundo é especial. Tanto que convidados de outras edições vêm para prestigiar as novas atrações especiais e para se apresentar "sem compromisso". E esse foi o caso do Paulo Sant'anna que, dessa vez, veio sem Chico Contador, mas veio acompanhado de seus versos e os compartilhou com a casa. E, se no terceiro evento contamos com a presença do pessoal do
Sarau da Ademar, nesse tivemos Bibo, do
Sarau do Vinil. Deixou sua arte no cavalete (que fica aberto, assim como os microfones, a quem se habilitar) e avisou que o sarau rola todo primeiro sábado do mês, na Taberna Freece. Prestigiemos!
E tem poeta no Semente também! Leonardo (Tatu) explicou que Jurubatuba era o nome pelo qual os índios chamavam o Rio Pinheiros antigamente e versou sobre a época em que o Jurubatuba não era "podre". Depois dele veio a Cris, que disse que o tema a inspirou a cantar uma composição sua sobre os nossos rios marginais.
O Sarau da Madrugada está começando, mas já mantém duas tradições milenares: café da manhã na padaria e
Rafael Emílio no "palco". Antes de cantar, o Rafa falou da energia sempre positiva do sarau e do quanto aumentou o número de pessoas no espaço, desde o primeiro. Ele não viu, nem ouviu, mas o Contra-Mestre Fábio Formigão tirou o chapéu e disse: "esse menino é bom". É da casa e tá aprovado pelo dono da casa. Moral! E o CD tá quase pronto. Aguardamos 'Mãe Natura'!
Quem voltou também foi o Vinícius. Cantou uma composição própria com Rafael Emílio no violão e Alan Zas na tumbadora. O Leonardo (Tatu) pegou o violão e pediu licença para fazer um "rap tragicômico", com Renan no beat box. E o violão seguiu trabalhando, dessa vez nas mãos da Ana Beatriz. Assim como o Vinícius, ela fez um som no sarau passado e voltou para cantar novamente. E como canta! Tim Maia, Cazuza e uma letra dela para finalizar.
"Anime-se"! Vinícius Cabelo (Ministro) e Phillippi Giovanni do Grupo CTRL, mandando um rap, com Alan Zas no violão e Hélio no atabaque. Depois do som, o Alan mandou mais um recado. Disse para a galera valorizar mais o que se faz na periferia. Conhecer melhor o trabalho de pessoas como o Akins, adquirir material. E o próprio Akins voltou ao microfone, dizendo que quem dá valor não chega à capoeira e ao candomblé como "cliente". Chega como "manutenção". E a fala segue a linha do lema do sarau: quem chega para somar está em casa. Dado o recado, mandou mais uma. 'Fora de padrão', uma poesia cheia de sensualidade e conscientização. Essa foi aplaudida de pé também, mas aos gritos. "O que não falta é militante de poesia, falta militante de vida". Akins finalizou com 'Valeu', aplaudido em pé mais uma vez. Referência!
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Bibo Representou (Sarau do Vinil) |
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Leonardo mandou a sua sobre o Rio "Jurubatuba" (Pinheiros) |
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Cris, se inspirou nas águas e mandou sua canção |
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Rafa Emílio aproveitou a inspiração musical e mandou as suas |
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E as telas começaram a brotar (Rodrigo) |
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Vinícius mandou seu Rap acompanhado da Galera |
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Leonardo e Renan no Rap tragicômico |
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Bibo mostrou sua versatilidade e foi pros pincéis |
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CTRL representou, com bases improvisadas no violão e percussão |
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Os meninos tem visão... |
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Akins: "O que não falta é militante de poesia, falta militante de vida" |
A volta dos que não foram
Mais alguns versos, mais alguns acordes e, quase no fim da noite, a volta dos que não foram. Um samba estava rolando na calçada do espaço do Semente. A justificativa para o isolamento foi boa: "estamos transcendendo os limites do sarau". Voltaram e voltaram cantando. Subiram as escadas entoando 'O sol nascerá'. Quando chegou lá em cima, o forró era quem estava no comando do som. Sem queixas. Quem de samba gosta doente do pé não é.
E o forró virou samba, e o samba virou afoxé, e o afoxé virou faxina, e a faxina virou café da manhã, e estava encerrado o 4º Sarau da Madrugada. Dia 7 de dezembro tem o último do ano. Antes dele, tem festa no espaço, dia 17 de novembro, com a presença do Mestre Jogo de Dentro. A energia das festas no Semente é tão poderosa quanto a do sarau. "Ou mais"!
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O samba improvisado com a galera em sintonia |
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O Forró Pé de Serra Chegou na madrugada |
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Nas telas a inspiração continuou brotando (Vinícius Cabelo) |
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Samba de Roda e Afoxé sob a regência do Contramestre Formigão |
Cheguem e somem, notívagos! Até breve!